domingo, 31 de agosto de 2008

Tarde de Maio


Tarde de Maio

Como esses primitivos que
carregam por toda a parte o
maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios
que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, tão
mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus
traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra,
deixava ainda palpitantes
e condenados, no solo ardente,
porções de minha alma
nunca antes nem nunca mais
aferidas em sua nobreza sem fruto.

Mas os primitivos imploram à
relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei
que portentos.
eu nada te peço a ti,
tarde de maio,
senão que continues, no tempo e
fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai
consumindo
a ponto de converter-se em sinal
de beleza no rosto de alguém que,
precisamente, volve o rosto e passa...
Outono é a estação em que
ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes morremos.
Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência
das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas
vestes a poeira do carro fúnebre,
tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor
inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam
dizer: se era um préstito lutuoso,
arrastado, poeirento, ou um
desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.
Não há nunca testemunhas.
Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama,
quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram e negam.
O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao
jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há
tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha
em que repousava.
E resta, perdida no ar, por que
melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir
seu selo nas nuvens.
C. Drummond de Andrade

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Você tem que ter um amante!


"Hay que buscarse un Amante"
[Dr. Jorge Bucay - Psicólogo]
Muitas pessoas têm um amante e outras gostariam de ter um. Há também as que não têm, e as que tinham e perderam. Geralmente são essas últimas as que vêm ao meu consultório para me contar que estão tristes ou que apresentam sintomas típicos de insônia, apatia, pessimismo, crises de choro ou as mais diversas dores. Elas me contam que suas vidas transcorrem de forma monótona e sem perspectivas, que trabalham apenas para sobreviver e que não sabem como ocupar seu tempo livre.
Enfim, são várias as maneiras que elas encontram para dizer que estão simplesmente perdendo a esperança. Antes de me contarem tudo isto, elas já haviam visitado outros consultórios, onde receberam as condolências de um diagnóstico firme: "depressão", além da inevitável receita do anti-depressivo do momento. Assim, após escutá-las atentamente, eu lhes digo que elas não precisam de nenhum anti-depressivo; digo-lhes que elas precisam de um AMANTE!
É impressionante ver a expressão dos olhos delas ao receberem meu conselho. Há as que pensam: "Como é possível que um profissional se atreva a sugerir uma coisa dessas?!" Há também as que, chocadas e escandalizadas, se despedem e não voltam nunca mais. Àquelas, porém, que decidem ficar e não fogem horrorizadas, eu explico o seguinte: "AMANTE é "aquilo que nos apaixona".
É o que toma conta do nosso pensamento antes de pegarmos no sono e é também aquilo que, às vezes, nos impede de dormir.
O nosso AMANTE é aquilo que nos mantém distraídos em relação ao que acontece à nossa volta. É o que nos mostra o sentido e a motivação da vida. Às vezes encontramos o nosso amante em nosso parceiro, outras, em alguém que não é nosso parceiro, mas que nos desperta as maiores paixões e sensações incríveis.
Também podemos encontrá-lo na pesquisa científica ou na literatura, na música, na política, no esporte, no trabalho, na necessidade de transcender espiritualmente, na boa mesa, no estudo ou no prazer obsessivo do passatempo predileto...
Enfim, é "alguém" ou "algo" que nos faz "namorar" a vida e nos afasta do triste destino de "ir levando". E o que é "ir levando"? Ir levando é ter medo de viver. É o vigiar a forma como os outros vivem, é o se deixar dominar pela pressão, perambular por consultórios médicos, tomar remédios multicoloridos, afastar-se do que é gratificante, observar decepcionado cada ruga nova que o espelho mostra, é se aborrecer com o calor ou com o frio, com a umidade, com o sol ou com a chuva. Ir levando é adiar a possibilidade de desfrutar o hoje, fingindo se contentar com a incerta e frágil ilusão de que talvez possamos realizar algo amanhã. Por favor, não se contente com "ir levando"; procure um amante, seja também um amante e um protagonista da SUA VIDA...
Acredite: o trágico não é morrer; afinal a morte tem boa memória e nunca se esqueceu de ninguém. O trágico é desistir de viver; por isso, e sem mais delongas, procure um amante...
A psicologia, após estudar muito sobre o tema, descobriu algo transcendental:
"PARA SE ESTAR SATISFEITO, ATIVO E SENTIR-SE JOVEM E FELIZ, É PRECISO NAMORAR A VIDA".

domingo, 10 de agosto de 2008

Lígia



Ligia - Tom Jobim

Eu nunca sonhei com você
Nunca fui ao cinema
Não gosto de samba
Não vou à Ipanema
Não gosto de chuva
Nem gosto de sol
E quando eu lhe telefonei
Desliguei, foi engano.
Seu nome eu não sei,
Esquecí no piano as bobagens de amor
Que eu iria dizer
Não, Lígia, Lígia.

Eu nunca quis tê-la ao meu lado
Num fim de semana
Um chop gelado em Copacabana
Andar pela praia até o Leblon

E quando eu me apaixonei
Não passou de ilusão
O seu nome rasguei
Fiz um samba-canção
Das mentiras de amor
Que aprendí com você.
Lígia, Lígia.

E quando você me envolver nos seus braços serenos
Eu vou me render
Mas seus olhos morenos
Me metem mais medo
Que um raio de sol
Ligia, Ligia.