sexta-feira, 31 de outubro de 2008
A irmã do gnomo - João Paulo Duarte (3/10/2008)
Ana se vê quando ainda tinha três anos. Foto velha, em preto e branco, do fim dos anos 50. Óculos escuros de haste branca, bem grandes se comparados àquela cabecinha, e os olhinhos castanhos, bem claros, que estavam por trás. Uma princesinha naquele vestidinho branco com rendas na gola, bem simples. E com um laçarote amarrado na cintura. O sorriso que precedia a vida toda.
A partir daquela época, Ana lembrava-se de tudo.
Aos três anos – talvez antes – ela já tinha percebido o que seus pais demoraram muito tempo: era diferente do irmão. Menina arguta desde sempre, curiosa, muito comportada. Venerava e amava a mãe, e a ajudava nos cuidados com o irmão, um ano mais velho. O irmãozinho não sabia de quase nada, falava mal, tinha problemas com a coordenação motora e dificuldade em aprender. Ficava só observando os aviões. A pequena Ana percebeu que entendia tudo o que o irmão não sabia.
Dois anos depois, os pais foram para o exterior com o irmãozinho. Ana ficou sozinha. (Entendeu que a solidão não tinha nada a ver com abandono. A menina tinha os cuidados da avó e da governanta da casa, e toda a sorte de mimos, mas ficou sozinha. Era impossível entender por que a mãe se foi e levou o pai e o irmãozinho.) E assim passou quase um ano. Quando acordava, corria da cama pro berço do irmão mais novo – que contava menos de um ano. Tinha medo de que ele fosse também, e só ela restasse. Ana não se sentia mal por não ter viajado, ela apenas não entendia porque precisava ficar sozinha.
Quando os pais e o irmãozinho voltaram pra casa, Ana saltou de susto. O coraçãozinho tilintou novamente. (Pouco antes, ela fizera questão de vestir o vestido que mais amava, com meiazinhas brancas e o sapatinho branco daqueles que tem uma fivelinha, bem pequena. Arrumara a bonequinha – “o bebê” – também.) O ar lhe faltou e quase caiu enquanto tentava correr o mais rápido possível pela grama do quintal. Depois do abraço com toda força nas pernas da mãe, e dos beijos que dava no rosto dela – após ser levantada –, ainda no colo, procurou o irmão. Ele estava lá. De camisa de botão, short cinza, suspensório, e uns sapatinhos pretos brilhantes. Quando desceu do colo, beijou o pai, pegou o irmão pela mão e o levou no quintal pra mostrar que estava tudo limpinho, bem bonito pra eles. O menino sorriu e perguntou se o caminhão da Kibon já tinha passado.
Ana não se importava em brincar com o irmão diferente e sempre sentiu que precisava cuidar do menino que não conseguia ler – tinha os olhos tortinhos – e era até bonitinho na feiúra do rosto de gnomo. Quando passeavam na vila – tinham entorno de seis anos –, Ana ia à frente e o irmãozinho vinha a passos curtos e na ponta dos pés, bem engraçado. Quando passava um avião ele parava – fazendo um balanço característico de uma perna pra outra, exprimindo felicidade – e o ficava procurando no céu. Ela voltava, ficava do lado dele, e fingia que procurava também. A menina era uma graça olhando pra cima, os cabelos bem lourinhos, lisinhos, caindo pelos olhos. Após a euforia do irmãozinho, ela lhe perguntava se podia continuar o passeio. Ele sempre aceitava. Chegavam à banca de jornal e Aninha comprava gibi e ficava lendo pro irmãozinho. Aninha adorava ler pro irmão. Voltavam pra casa, de mãos dadas, a tempo pro almoço.
De tardinha, o irmãozinho ficava no portão esperando o vendedor de cachorro-quente, ou o vendedor de sorvetes. Aninha ficava também na varanda, arrumando as bonecas. Depois do sorvete, era a vez de esperar o pai chegar do trabalho.
Aninha conversava com o irmão um monte de coisas. Ele gostava de falar de bateria, batedeira, máquina de polir, avião, trator e de ficar imaginando quanto tempo demoraria pra chegar as horas do almoço, de dormir, do dia amanhecer e de acordar. Ela gostava de falar de outras coisas. Mas tinha paciência pra falar das coisas dele. Ele gostava muito de falar sozinho também. Ela também não se importava.
Enquanto guarda a foto, com o sorriso no rosto, Ana (que, nos anos que a separam da foto, cresceu, chorou, sorriu, estudou, namorou, casou, teve filhos, trabalhou, estudou, chorou, sorriu, criou os filhos…) fica emocionada de verdade, e se sente meio sozinha de tudo que foi embora e de tudo que poderia ter sido. Logo mais, à noite, o irmãozinho vai ligar e falar de bateria, batedeira, máquina de polir, avião, trator e perguntar quanto tempo vai demorar pra o dia amanhecer e que horas vai acordar.
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2 comentários:
Que história doce e bonita...
Ana
História baseada em fatos reais
Conheço os personagens
Todos humanos palpáveis
Sensacionais
Abraço solidário
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